DECISÃO
STJ anula decisão contra fazenda pública e pede investigação sobre atuação de autoridades do Amapá
Devido a uma série de “atrocidades
processuais”, como definiu o ministro Herman Benjamin, a Segunda Turma
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou decisão do Tribunal de
Justiça do Amapá (TJAP) proferida contra o estado, que tenta evitar o
pagamento de quase R$ 14 milhões à empresa Setra – Segurança e
Transporte de Valores Ltda.
O TJAP extinguiu ação rescisória
movida pelos procuradores do estado depois de homologar um acordo
duvidoso. A dívida cairia de cerca de R$ 14 milhões para R$ 8,7 milhões,
pagos em 11 parcelas mensais diretamente na conta do advogado da
empresa (declarada inapta com base na legislação tributária), sem a
expedição de precatório judicial – o que contraria a Constituição
Federal.
Além de anular o acórdão e exigir novo julgamento da
ação rescisória no TJAP, a Turma determinou a remessa de cópia do
processo ao Conselho Nacional de Justiça, ao Ministério Público Federal,
à corregedoria da Procuradoria-Geral do Amapá e ao governador, para
apuração de irregularidades disciplinares, atos de improbidade e até
mesmo crimes que possam ter sido cometidos por autoridades locais, entre
elas um desembargador, hoje vice-presidente do TJAP, e uma
ex-procuradora-geral do estado.
Relator do caso, o ministro
Herman Benjamin disse que o processo “denota sérios erros de julgamento
que deixaram passar em livre trânsito um sem-número de gritantes
vulnerações ao ordenamento jurídico e às mais comezinhas normas e
princípios regentes da administração pública”.
Segundo ele, a
“complacência” do TJAP e da Procuradoria-Geral do estado diante de
tantos erros, capazes de gerar grave lesão ao erário amapaense,
“recomenda sejam apuradas eventuais irregularidades ou desvios
funcionais na atuação de seus membros”.
Assinatura falsa
O
caso chegou ao STJ por meio de recurso especial em ação rescisória
proposta pelo estado do Amapá. O objetivo da ação é desconstituir o
julgamento de processo que condenou o estado a pagar R$ 13,8 milhões à
Setra, em valores atualizados. Para isso, os procuradores estaduais
apontaram inúmeras violações legais naquela decisão e ainda o fato de
que a condenação do estado teria sido amparada em documento fraudulento,
no qual constava assinatura falsa do governador. Eles apresentaram
laudo da polícia técnica atestando a falsidade da assinatura.
Apesar
de tudo isso, o TJAP julgou a rescisória prejudicada, sem analisar o
mérito das alegações. Essa decisão fundamentou-se exclusivamente em
informação prestada de forma unilateral pela Setra, de que as partes
haviam chegado a acordo extrajudicial.
A formalização desse
acordo foi feita em 2010 por ordem do então presidente do TJAP,
desembargador Dôglas Evangelista Ramos, que exercia interinamente o
cargo de governador do Amapá porque o governador titular, Pedro Paulo
Dias, estava preso em razão das investigações da Operação Mãos Limpas,
da Polícia Federal.
Dôglas Evangelista (atual vice-presidente do
tribunal) havia participado anteriormente dos julgamentos da apelação e
dos embargos infringentes que deram origem à dívida em discussão. Mesmo
em meio a essas peculiaridades, o acordo foi homologado pelo TJPA.
Novo julgamento
O
recurso submetido ao STJ é contra o julgamento da ação rescisória, tida
pelo TJAP como prejudicada. O ministro Herman Benjamin considerou que a
ação foi precocemente extinta sem a investigação necessária para
elucidar as gravíssimas alegações quanto à falsificação da assinatura do
ex-governador Annibal Barcellos.
Para o relator, ainda que a
tese da falsidade tenha sido embasada em laudo oficial da polícia
técnica do estado, que tem presunção de veracidade, o caso deve ser
analisado no âmbito da ação rescisória pelo TJAP, para permitir o
contraditório. “Uma vez comprovada a falsidade dos documentos que
serviram à condenação, seguramente outro será o resultado a que se
chegará no rejulgamento da ação de cobrança”, explicou Benjamin.
Seguindo
a posição do relator, a Turma entendeu que a ação rescisória não
deveria ser julgada diretamente pelo STJ, para preservar os princípios
do duplo grau de jurisdição e do devido processo legal. Contudo, o
colegiado deu parcial provimento ao recurso do estado do Amapá para
anular o acórdão estadual e determinar o retorno do processo ao TJAP,
para que haja regular processamento e julgamento da ação rescisória.
Açodamento
Ao
analisar o pedido de anulação do acórdão proferido pelo TJAP, Herman
Benjamin observou que “o açodamento com que a corte estadual homologou o
acordo e determinou a extinção da ação rescisória por perda de objeto
importou em flagrante nulidade por vício extra petita”. Ou
seja, ao extinguir a rescisória, sem nem mesmo ouvir o estado, o TJAP
concedeu o que não havia sido pedido na ação, apenas aceitando a
informação prestada unilateralmente pela Setra, sem a assinatura da
Procuradoria-Geral do Amapá.
Para o relator, não se pode inferir
da mera realização de acordo a presunção absoluta de concordância do
estado com a extinção da ação rescisória. Tanto que, pouco depois de
firmado o acerto extrajudicial, o governo do estado, no legítimo
exercício do poder de autotutela, editou decreto que o anulou.
Além
disso, o próprio acordo previa suspensão, e não a extinção do processo,
até o cumprimento final da transação. “Diante dessa convenção firmada
entre os transigentes, cumpria ao tribunal de justiça pelo menos
estranhar o requerimento de extinção, ardilosa e maliciosamente
formulado pela empresa Setra, em clara afronta à cláusula do acordo por
ela mesma firmado”, disse o ministro, para quem houve cerceamento do
direito de defesa do estado.
Acordo ilegal
Para
Herman Benjamin, o julgamento realizado pelo TJAP traz uma série de
“aberrações jurídicas”. Segundo ele, o acordo é manifestamente ilegal,
pois atropelou o indispensável instrumento do precatório, necessário
mesmo em crédito de natureza alimentar.
O relator destacou que
todas essas questões foram apontadas no julgamento em voto divergente do
desembargador Edinardo Souza, que não homologou o acordo e votou pelo
prosseguimento da ação.
Benjamin afirmou que, nos termos do
artigo 129 do Código de Processo Civil, o juiz não pode homologar acordo
de licitude duvidosa e que viola os princípios gerais do ordenamento
jurídico. Além disso, é ilegal e insuscetível de homologação judicial a
transação entre a administração pública e o particular que viola a
sequência dos precatórios, mesmo se o credor renunciar a parte do
crédito.
“As atrocidades processuais não param por aí”, disse o
ministro no voto. Também chamou sua atenção o fato de que o acordo não
aponta a origem dos recursos que seriam utilizados para pagar as
prestações mensais – uma clara violação ao artigo 167 da Constituição,
regra que condiciona toda despesa pública a uma receita.
Outra
ilegalidade reside no fato de que a Setra estaria inapta segundo a Lei
11.941/09, de forma que ela não pode nem mesmo movimentar uma conta
corrente. Por essa razão, o acordo prevê os depósitos em conta do
advogado da empresa.
Com todas essas considerações, a Turma seguiu o voto do relator para reconhecer a nulidade do acórdão proferido pelo TJAP.
Atuação de autoridades
“Causa
absoluta estupefação observar que a realização da avença fora
autorizada pelo governador em exercício, o desembargador Dôglas
Evangelista Ramos, o que empresta maior gravidade aos fatos”, disse
Benjamin. Isso porque, além de o magistrado de segundo grau ter mais
condições técnico-jurídicas que o próprio governador para identificar a
lesividade do acordo, ele participou do julgamento da apelação e de
embargos infringentes na ação ordinária de cobrança ajuizada pela Setra.
O ministro destacou ainda que o parecer consultivo que levou ao
acordo foi elaborado pela então procuradora-geral do estado, Luciana
Marialves de Melo, a mesma que depois assinou o termo da avença
manifestamente inconstitucional, segundo ele. “O parecer consultivo,
pasmem, foi aprovado por ninguém menos que o governador em exercício, o
desembargador Dôglas Evangelista Ramos”, apontou Benjamin.
Para o
relator, a conduta do agente público que autorizou despesa lesiva ao
patrimônio público sujeita-se a apuração de responsabilidade, conforme
preveem a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Diante
dessas constatações, a Turma resolveu acionar órgãos de controle, com o
envio da decisão e de todo o processo. Ao Conselho Nacional de Justiça
cabe verificar eventual falta de correção no cumprimento dos deveres
funcionais dos magistrados. Ao Ministério Público Federal compete
averiguar a ocorrência de infração à legislação penal ou à Lei de
Improbidade Administrativa. Já a corregedoria da Procuradoria-Geral do
Amapá deve identificar eventuais desvios funcionais e disciplinares de
seus membros.
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Coordenadoria de Editoria e Imprensa