terça-feira, 5 de setembro de 2017

CONTOS DA BEIRA DO RIO AMAZONAS- POR NECA MACHADO-AMAZONIA, EM PORTUGAL


BIOGRAFIA

Neca Machado (Ativista Cultural, altruísta que preserva os sabores e saberes da Amazônia, através dos Mitos e Lendas da Beira do Rio Amazonas no extremo norte do Brasil, é, Administradora Geral, Artista Plástica, Bacharel em Direito Ambiental, Especialista em Educação Profissional, Escritora de Mitos da Amazônia, fotografa com mais de 100 mil fotografias diversas por 11 Países (Europa, Oceania, América do Sul) 2016, classificada  em 2016  na obra brasileira “Cidades em tons de Cinza”, de novo em 2017, Concurso Urbs,  classificada com publicação de um poema na obra Nacional, “Sarau Brasil”, Novos Poetas de 2016, de novo em 2017. Pesquisadora da Cultura Tucuju, Contista, Cronista, Poetisa, Coautora em 10 obras lançadas em Portugal em 2016 e 2017, Autora independente da Obra Mitos e Lendas da Amazônia, Estórias da Beira do Rio Amazonas, publicada em 02 edições em Portugal em 2017, edição limitada, Coautora na obra lusa, lançada em Lisboa em 09.09.2017, A Vida em Poesia, Licenciada Plena em Pedagogia, Gastro-Foto-Jornalista, Blogueira com 25 blogs na web, 21 no Brasil e 04 em Portugal, Quituteira e designer em crochê.)






UM ROSTO
Conto publicado no Jornal Diário do Amapá em, 23 de fevereiro de 2003.

O rosto que apareceu no espelho não era verdadeiro!

A moradora do bairro do Igarapé das Mulheres se espantou; tinham rugas que pareciam de verdade, o sorriso era enigmático e traiçoeiro, como um verdadeiro Demonio. A luz que pairava sobre o vulto sem forma no reflexo do espelho era assustador.
A noticia correu como um campeonato de velocidade, primeiro a benzedeira foi chamada, depois cobriu com um pano o local, passou algo embebido em cachaça, fumou um cigarro barato, fez o sinal da cruz e a coisa não sumiu.
A casa foi construída na beira do Igarapé das Mulheres, seus pés permaneciam dentro das águas barrentas o ano todo; às vezes a madeira de lei ficava totalmente encoberta, outras vezes somente a metade, dizem as más línguas que foi a reza de um pescador sentimental que agourou a velha casa, comprada com trocas de muitas viagens de pescaria, alqueires de farinha, piracuí e algumas frutas que foram plantadas na parte mais alta da propriedade, que serviu de moeda para adquirir tal patrimônio.

A reza foi complementada com muita água benta deixada de presente pelo velho pároco que estimava a família.

No espelho o visitante ao olhar a imagem refletida, tinha a sensação de realmente se deparar com um ROSTO, as vezes com o reflexo do sol do equador, até parecia um Anjo.
Se era uma imagem masculina, o padre que também foi chamado, não soube explicar. O que realmente aconteceu foi algo assustador; os antigos moradores sumiram de repente, como por encantamento de mãe do mato, a policia ainda tentou investigar o sumiço, porém, nada foi deixado como pista. Era um casal de velhos da Ilha do Marajó, não tinham filhos, viviam somente da pescaria, e um dia a noticia chegou: os pobres velhos sumiram, alguém achou que foi o Boto, outros que foram comidos por jacaré açu que rondavam o local, e nada.
O que se comentava pelos cantos, era que agora, com alguém morando na mesma casa, os antigos donos queriam voltar e assumir seu lugar, um lugar agora habitado por demônios.

O ROSTO no espelho ficou na lembrança de muitas pessoas, como Dona Maroca que só de lembrar ainda sente calafrios na espinha e se benze, dizendo: Cruz, credo, virgem Maria!








FUNDO DE GAVETA
Publicado em 21 de fevereiro de 2003 no Jornal Diário do Amapá.

Quando ela se deparou chegando aos oitenta anos sentiu um leve frio na costela...
A negra dos Campos do Laguinho sentou na varanda da casa rústica e resolveu revirar seu passado, era como se limpasse o armário e olhasse profundamente para um fundo de gaveta...
Primeiro foram às mãos que envelheceram sem o sentir do passar dos anos, tinham marcas profundas de uma jovialidade, que a cor conservava, sem que o tempo demonstrasse sinal de sua presença.

Já não podia tocar em algo que as dores de um reumatismo não surgisse de repente, que a deixavam prostrada por dias a fio na velha rede de algodão.

Muitos sinais da passagem da juventude desapareceram, sumiram como por encanto. A dor de cabeça era uma constante, e o famoso banho de São João que conservava debaixo da cama, era sua salvação, o banho era um segredo de família, conservado anos. Em dias de comemoração ao famoso santo, as ervas aromáticas ficavam em infusão por três dias banhadas em água de poço amazônida e retirados pela madrugada, tinha que ser antes do sol raiar para fazer efeito segundo a velha senhora. Sua sabedoria popular extrapolou os limites do Laguinho e as consultas em sua casa eram diárias.

Na gaveta o fundo amarelado guardava alem das lembranças, muitas saudades. Recostou o ombro na cadeira de balanço, tirou um fio de cabelo, e percebeu sua cor esbranquiçada que ficou em suas mãos, neste momento, outra dor mais forte no peito. Eram as lembranças que aquela gaveta lhe trazia, não lhe faziam bem nenhum.
Pensou no tempo em que o velho murucizeiro conhecia suas lembranças, foram cúmplices durante muitas décadas, ele era um confidente leal, em sua sombra a cumplicidade, seus frutos doces no chão, somente uma desculpa para querer sua companhia. Agora as tardes não possuíam mais o encanto de outrora, havia naquele momento um amargo sabor de saudade.
A gaveta seria fechada de uma hora pra outra, e com ela toda uma vida de glorias, vitórias, desamor, magoas, arrependimentos, tristezas, sonhos... Tudo ficou no passado!

NO FUNDO DE UMA VELHA GAVETA!








A BORBOLETA
Publicado no Jornal Diário do Amapá em; 12 de fevereiro de 2003-cultura.

A BR 156 estava completamente nublada ao entardecer, e ainda no vidro do carro embaçado pela chuva fina, o motorista tentava não desviar da estrada, porém, os buracos em numero excessivo eram grande obstáculo, ele ainda estava preocupado com o sono leve que se aproximava deixando transparecer um ar de inquietação.

Neste momento um caminhão carregado de eucaliptos que vinha em sentido contrario o fez redobrar a atenção para não ocasionar um acidente grave.
O buraco no meio da estrada surgiu como por encanto, ele sabia que não estava lá quando veio pela primeira vez, e o sol ainda estava no alto norteando sua viagem. O barulho das rodas no asfalto fez com que os ocupantes que estavam no banco de traz acordassem, e aos gritos perguntavam: o que foi isso? E o coitado branco de medo não tinha uma explicação.

A viagem com o primeiro susto seria o começo de uma grande odisséia naquela noite. O carro equilibrava na estrada como que conduzido por algo estranho e o motorista continuava com seu medo sem demonstrar aos outros ocupantes.
O vento forte que bateu no vidro da janela, fez com que uma claridade repentina despertasse o motorista que já se acalmava do primeiro susto, e ele não sabe explicar como o fenômeno aconteceu: primeiro foi uma rajada de vento acompanhado de uma luz muito forte, depois um inseto que foi se transformando em algo maior e ele exclamou assustado aos amigos que era uma Borboleta gigante.
No percurso com destino ao município amapaense de Ferreira Gomes, uma Borboleta luminosa acompanhou a viagem sem se deixar ficar para traz.
As vezes acompanhava do lado direito do carro, e quando o motorista tentava firmar o olhar para reconhecer o inseto, ela se esquivava e desaparecia, para logo em seguida surgir do nada no outro lado.

A luz que a rodeava era uma luz diferente que mudava de cor segundo o tal motorista que não conseguiu descrever qual a sensação de visualizar algo sobrenatural. Também existiu o medo que foi indescritível naquele momento de pavor.

E a estória da tal Borboleta Gigante se espalhou pelos velhos motoristas da BR 156.










DESPEDIDA
Publicado no Jornal Diário do Amapá em: 13 de fevereiro de 2003-cultura.

As chuvas de março sempre foram inspirações para os mais sensíveis com o coração.

    O frio une os amantes tornando-os mais cúmplices e amigos, fortalecendo as relações recíprocas de afeto, e deixando aflorar cada poeta escondido em um emaranhado de funções cotidianas, onde as obrigações tornam-se prioridades, deixando de lado a parte emotiva do ser humano.

A noite é um labirinto de desejos, que atinge o clímax quando a chuva começa a dar seus primeiros sinais, deixando as emoções nortearem os instintos, onde o entrelaçar de mãos, o sussurrar de sons indecifráveis é um ritual continuo sem hora para acabar.

O casal de namorados fez sua primeira jura de amor debaixo de uma das arvores centenárias da avenida Beira Rio, onde o vento forte do Rio Amazonas serviu de testemunha, pássaros eram platéia, que empolgados com o romance gorjeavam sem parar. Juras intermináveis, sensações luxuriantes e inebriantes faziam parte do cenário, e a chuva era o complemento final de uma cena de amor. Prometeram amar-se eternamente, até que a morte os separasse, cascas de arvores frondosas foram arrancadas e marcaram através de incrustações, como testemunho de um compromisso informal, sem a presença de um contrato civil, a relação amorosa daqueles eternos amantes.

    O rapaz ao se despedir da amada ainda conservava no semblante o grau de felicidade que ela lhe proporcionou, e não percebeu o automóvel que se aproximava com regular velocidade, que o apanhou na lateral da calçada e ele foi atingido justamente na cabeça, tendo naquele momento traumatismo craniano fatal.

    A noticia chegou como um raio que atingiu a moça em cheio, sem uma explicação que jamais será aceita. E ela com as mãos na cabeça, aos gritos sem conseguir pronunciar as frases corretas, tentava entender o por que? Daquela DESPEDIDA.

Ele anteriormente desejava ser feliz e prolongar aquela felicidade que foi interrompida sem explicação. Ficará somente na entranha de uma arvore a lembrança de uma jura de amor.

 Despedidas inexplicáveis acontecem todos os dias, porém, jamais conseguiremos compreender!








COMIGO NINGUÉM PODE...
Publicado no caderno de cultura do Jornal Diário do Amapá em: 28 de novembro de 2002.

    A planta altamente venenosa é uma espécie de tajá brabo. Para os curandeiros que praticam a pajelança ela possui poder miraculoso que combate o mau olhado.

    O pé de comigo ninguém pode ficava atrás da casa de um morador antigo do bairro do Laguinho. A matriarca tinha mania de curar a arvore que, viçosa possuía as folhas mais bonitas da redondeza, sua cor de um verde-oliva chamava a atenção de todos que a observavam com inveja, segundo a proprietária.
  
 Entremeadas entre o verde e o branco as folhas reluziam seu brilho ao cair da tarde, sua forma como se fosse um coração se debruçava ao vento demonstrando que possuía superioridade entre as outras plantas do quintal.

Todos os dias o belo pé de Tajá recebia bacias cheias de água curada como diziam os mais antigos.
Na mistura benta lá se iam: sal grosso, alho batido no pilão de pau, folhas de mucuracaá, ramos de alecrim, pingos de cachaça pura e virgem e lavagem de água de carne fresca. Quando recebia seu banho o pé de comigo ninguém pode só faltava falar, suas folhas balançavam soberbas, e o vento vinha com uma docilidade como se conversasse com a touceira do Tajá venenoso.

Um dia a vizinha ouviu um assovio; começou fino, depois cresceu, ecoou pelo quintal, penetrou na alma, e ela procurou entre os pés de açaizeiro se havia alguém escondido lá, nada de anormal foi avistado. Varias vezes ela escutou o mesmo som e começou a partir daquele dia a prestar mais atenção de onde ele vinha.

Descobriu assustada que era do pé de Comigo Ninguém pode.



O BODE
Publicado no Jornal Diário do Amapá em: 12 de agosto de 2002.

O Curiaú se orgulha de sua gente e de suas lendas perpetuadas por pioneiros como seu Joaquim Tiburcio  Ramos.
A lenda do BODE foi propagada por muitos e muitos anos.

Contam os mais antigos que José Clarindo depois de uma tarefa na roça dirigia-se para sua residência lá pelas seis horas da tarde, e com a proximidade do entardecer, o medo tomava conta dos moradores, que intimidados pelas conversas de conhecidos e contadores de causos de aparecimentos de visagens, esperavam a presença do tal Bode Preto, que segundo seu Joaquim possuía uma barba rente aos pés. Clarindo não se intimidou, disse que ia de qualquer jeito, porém Tia Raimunda o aconselhou: “José não vai o Bode pode te pegar”! Seu Joaquim disse que com o seu porrete de paxíuba , nem um Bode o intimidaria, e reiterou: que “não ia crú” o porrete não o abandonaria. Ele não se acovardou, porem, a morrinha lhe pegou.

Dizem que no dia 26 de julho o Bode realmente apareceu e a partir daí a lenda se espalhou e virou estrofe do cancioneiro popular nas trovas de cantorias dos batuques regionais, e uma delas diz assim:

“Na cisma do Joaquim/ nas terras do Curiaú/ não falo com todo mundo/ lá apareceu um Bode/ e tão dizendo que sou EU/”

Alguns mais afoitos propagavam um boato que quando as pessoas mais antigas, próximas da morte, elas se encantavam e viravam: Bode, Onças, Porcos, etc...

E assim a lenda do Bode Preto não desapareceu, continua viva e na memória de muitos pioneiros afrodescendentes como o seu Joaquim.

Seu Joaquim Tiburcio Ramos já é falecido.