sábado, 31 de outubro de 2015

O SER HUMANO É TÃO INGRATO QUE NÃO RETRIBUI E NEM RECONHECE

Antropologia e Formas quotidianas - a Filosofia de
S. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia
(Conferência proferida na Universitat Autònoma de Barcelona,
Dept. de Ciències de l'Antiguitat i de l'Etat Mitjana, 23-4-98)

L. Jean Lauand
     "Obrigado", "Parabéns", "Perdoe-me", "Meu caro", "Felicidades", "Meus pêsames" e diversas outras formas de linguagem do relacionamento quotidiano - nas diversas línguas - encerram em si profundas informações para o estudo filosófico do homem. Para além do eventual formalismo vazio em que o uso diário tende a arremessá-las, essas expressões - à primeira vista, tão inofensivas - incidem, originariamente, sobre importantes dimensões da realidade humana.
     A partir da discussão metodológico-temática sobre a linguagem e a antropologia filosófica (guiados pelo clássico S. Tomás de Aquino), essas fórmulas de convivência mostram-se autênticas mensagens cifradas, por vezes infinitamente surpreendentes e sábias... Como diz Isidoro de Sevilha, sem a etimologia não se conhece a realidade e com ela mais rapidamente atinamos com a força expressiva das palavras (1).
     Na verdade, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e quase automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Daí a atenção do filósofo para os modos de dizer, os contextos, as sutilezas da linguagem comum, em sua própria língua ou em outras.
     Quando a filosofia se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica.
     Tal apropriação, dizíamos, não é fácil nem imediata. Nossa tendência é antes a de embotamento e esquecimento do profundo sentido originário que acabou por se consubstanciar nesta ou naquela formulação. Pois, sempre vige aquela verdade fundamental, ressaltada tanto pela antropologia ocidental quanto pela oriental: o homem é, essencialmente, um ser que esquece!(2) E, assim, a linguagem, a língua viva do povo, acaba por ser em muitos casos a depositária das grandes experiências esquecidas. E se quisermos resgatar o sentido do humano que elas encerram, devemos voltar-nos, criticamente, para esse depósito... Não é de estranhar, pois, que num clássico como Tomás de Aquino encontremos uma filosofia altamente comprometida com a linguagem. Nesse sentido, é oportuno recordar alguns de seus princípios metodológicos.
1) Nossas palavras, freqüentemente, só alcançam fragmentariamente - Tomás usa o advérbio divisim - a realidade, que é complexa, que supera, de muito, a capacidade intelectual humana. Aliás, é de Tomás a aguda observação de que "filósofo algum jamais chegou a esgotar sequer a essência de uma mosca". Ao contrário de Deus, que expressa tudo num único Verbo, "nós temos de expressar fragmentariamente os conhecimentos em muitas e imperfeitas palavras"(3).
2) Outro fenômeno interessante, também ele ligado à limitação de nosso conhecimento/linguagem, é o que poderíamos denominar: efeito girassol, assim explicado por Tomás: "Já que os princípios essenciais das coisas são por nós ignorados, freqüentemente, para significar o essencial (que não atingimos) nossas definições incidem sobre um aspecto acidental"(4). Assim, por exemplo, todo o ser da planta que chamamos girassol é designado por um fenômeno-gancho, acidental e periférico, no caso o do heliotropismo.
3) Daí, também, que não escape ao Aquinate o fato de que, freqüentemente, é diferente o gancho, o aspecto, o caminho pelo qual cada língua acessa uma determinada realidade: o mesmo objeto que me protege contra a água (guarda-chuva) produz uma sombrinha (umbrella). Daí, diz Tomás, que "línguas diferentes expressem a mesma realidade de modo diverso"(5).

"Muito obrigado" - os três níveis da gratidão

     Dizíamos que a limitação do conhecimento humano reflete-se na linguagem: não podemos expressar o que as coisas são, na medida em que não sabemos completamente o que elas são. Além do mais, muitas vezes, uma palavra acentua originariamente só um dentre os muitos aspectos que a realidade designada oferece. E pode ocorrer que, com o passar do tempo, essa realidade mude, evolua substancialmente a ponto de perder a conexão com o étimo da palavra, que permanece a mesma. Isto não nos choca, pois, no uso quotidiano, as palavras vão perdendo transparência: falamos em salada de frutas porque envolve mistura e nem notamos que salada deriva de sal. Do mesmo modo, o barbeiro, hoje em dia, quase já não faz barbas, mas cortes de cabelo; como também o tintureiro já não tinge, mas só lava; o garrafeiro compra jornais velhos e muito poucas garrafas; o chauffeur não aquece, mas dirige o carro; e nem nos lembraríamos de associar funileiro a funil.

     Se essas incompatibilidades não nos causam estranheza é porque a linguagem tornou-se opaca para nós: dizemos colar, colarinho, coleira, torcicolo e tiracolo e não reparamos em que derivam de colo, pescoço (daí que seja incompreensível, à primeira vista, a expressão "sentar no colo").
     Essas considerações são importantes preliminares ao estudo da gratidão e das formulações que ela recebe nas diversas línguas. Tomás ensina que a gratidão é uma realidade humana complexa (e daí também o fato de que sua expressão verbal seja, em cada língua, fragmentária: este ou aquele aspecto-gancho é o acentuado): "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).
     Este ensinamento, aparentemente tão simples, pode ser reencontrado nos diferentes modos de que as diversas línguas se valem para agradecer: cada uma acentuando um aspecto da multifacética realidade da gratidão. Algumas línguas expressam a gratidão, tomando-a no primeiro nível: expressando mais nitidamente o reconhecimento do agraciado. Aliás reconhecimento (comoreconnaissance em francês) é mesmo um sinônimo de gratidão. Neste sentido, é interessantíssimo verificar a etimologia: na sabedoria da língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são, em sua origem, e não por acaso, a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionnary é claro: "The primary sense was therefore thought"(6). E, do mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar). Tudo isto, afinal, é muito compreensível, pois, como todo mundo sabe, só está verdadeiramente agradecido quem pensa no favor que recebeu como tal. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!"(7). Daí que S. Tomás - fazendo notar que o máximo negativo é a negação do grau ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) - afirme que a falta de reconhecimento, o ignorar é a suprema ingratidão(8): "o doente que não se dá conta da doença não quer se curar"(9).
     A expressão árabe de agradecimento shukran, shukran jazylan situa-se diretamente naquele segundo nível: o de louvor do benfeitor e do benefício recebido. Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê)(10) é relativamente complexa. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, graçacomporta três dimensões: 1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício; 2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado; 3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado. No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.
     No amplo quadro que expusemos - o das expressões de gratidão em inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, latim e árabe - ressalta o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado"(11). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situarse, claramente, naquele mais profundo nível de gratidão de que fala Tomás, o terceiro (que, naturalmente, engloba os dois anteriores): o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir. Podemos, agora, analisar a riqueza de sugestões que se encerra também na forma japonesa de agradecimento(12). Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Os dois últimos sentidos acima são compreensíveis: num mundo em que a tendência geral é a de cada um pensar em si, e, quando muito, regularem-se as relações humanas pela estrita e fria justiça, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus: "Como poderei retribuir ao Senhor - diz o Sl. 115 - por tudo o que Ele me tem dado?". Nessas situações de dívida impagável - tão freqüentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance (quid-quid potest), tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente(13) (cfr. III, 85, 3 ad 2). Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...).